segunda-feira, 17 de outubro de 2011

ESCURIDÃO

ESCURIDÃO

“Somos mais   normais quando sabemos o que está acontecendo.
Somos mais imprevisíveis quando não sabemos ".  navid  hassanpour

1
Minhas primeiras lembranças cinematográficas datam de não sei exatamente quando.
Lembro de uma  certa esquina de um certo cinema em Porto Alegre  onde assisti  a um certo  filme .
Guardo algumas poucas sensações e muitas imagens  desta " minha primeira vez".
Recordar faz com que os  tempos  verbais se misturem  na memória de quem descreve a lembrança.
Tudo era  gigantesco "naquele entonces”.
(adoro esta expressão importada .é uma afirmação do passado no presente.)
O mundo era todo  maior que eu.
Eu era uma miniatura dentro do meu mínimo vestido de veludo cotelê com pequeninas florzinhas bordadinhas em alto relevo.
Uma mão maior que  a minha  me levava para um lugar enorme.
Na entrada  um balcão  solene e interminável.A nobreza do mármore e da madeira contrastavam com  balas coloridas feitas de um  plástico saboroso . 
Para o alto  um  teto que eu não conseguia mais acabar de olhar.
O "lá em cima" ficava muito longe de mim.
Meus olhos giravam  tentando absorver tanta magnitude.
2
E  logo  a imensidão  da  sala  e da  tela branca descomunal.
E logo  a escuridão total.
Desesperada  procurei por pontos luminosos
Descobri  arandelas .
Nem sei de neons  vermelhos ,sinalizadores de emergências  ou toaletes.
Não lembro se haviam.Afinal nada era tão  urgente ,nem se bebia tanta água!
3
Nunca gostei do escuro.
Antes da luz apagada ou do sono fixava-me  na  janela do quarto. 
A vidraça era uma tela onde  cabeçudos insetos gigantes  e santos retorcidos projetavam-se pra me aterrorizar. Fechar os olhos significava  um tormento de  monstros azuis  com anteninhas  e de  imagens religiosas em tom sépia.
4
Todo aquele breu foi colorido pela gargalhada da bruxa com sua terrível maquiagem metaleira a la Kiss !
Mas  a maldade maior foi a das  maçãs envenenadas .
Eu queria invadir a tela e advertir a Branca de Neve do perigo.
E o Bambi ?! Um orfão abandonado na escuridão da floresta!
Eu queria levá-lo para a companhia dos meus gatos e cachorros.
5
Digamos que eu sofri demasiado na minha primeira incursão cinematográfica.
Tudo me atingiu  numa escala desumana.
Tanta violência,tanto medo ,tanta tristeza.
Mas e  o volume / intensidade das cores ,do som e da música?
-Droga da melhor qualidade!(desde então sou adicta das salas escuras cheias de estímulos)
6
Especulando retroativamente, tudo foi  fantástico e determinante.
Porque apesar dos poderosos recursos  tecnológicos atuais , estas ainda são as lembranças mais contundentes.
Talvez por conta  da fome de um cérebro mais jovem.
Eu era   uma virgem de experiências, noviça na vida ainda....
7
Mais velha descobri as benesses da escuridão.
Adoro retardar  os momentos que antecedem a luz no fim do túnel.
All black .
Chocolate  dark, uma guinness preta,um tapa olhos .
Amo a escuridão.
Dentro dela não há estímulos externos que me suscitam necessidades.
Do ponto de vista das pálpebras fechadas não sonho mais pesadelos.
Fechar os olhos em paz sem ter que morrer ou dormir é um luxo!
A escuridão é  a tábula rasa.A caverna do esquecimento.
Ela é perfeita para zerar. Para começar um novo raciocínio.
A neutralidade antes da novidade.
Tem a mesma função do copo de água antes do primeiro  gole de um vinho.
8
Agora as coisas  tem seu tamanho natural. As salas de cinema não me parecem mais tão descomunais.
Agora os olhos  tem que estar  sempre abertos .
As câmeras estão sempre acesas.
Agora é dificil você ter  a chance de ficar quietinha numa caverna aguardando ansiosa por alguma surpresa.
A menos que você vá ao cinema.
Sentada na poltrona .
Apagam-se a s luzes.
Escuridão.
Eu viro  folha branca vulnerável .
E me delicio entregue ao que virá.

angela dippe
10/10/2011


Nenhum comentário:

Postar um comentário